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sábado, 5 de junho de 2010

SÃO BERNARDO, UM EXERCÍCIO DE METALINGUAGEM

São Bernardo é um livro cheio de “vidas”. Seus personagens nada devem àqueles que encontramos todos os dias, ainda hoje, principalmente, no interior do Brasil. Sua estrutura revela, aqui e ali, as concepções que Graciliano Ramos tinha da vida e do “fazer literário”. Nesses termos é uma obra metalingüística. Afinal de contas, o personagem-narrador, ao escrever o livro sobre sua vida, discute o próprio conceito de literatura. Coincidência ou não, Paulo Honório e Graciliano Ramos concordam em alguns pontos sobre o ofício de escrever. Em Linhas Tortas, Graciliano Ramos afirma: “Os escritores atuais foram estudar o subúrbio, a fábrica, o engenho, a prisão da roça, o colégio do professor cambembe. Para isso resignaram-se a abandonar o asfalto e o café, viram de perto muita porcaria, tiveram a coragem de falar errado, como toda a gente, sem dicionário, sem gramática, sem manual de retórica. Ouviram gritos, pragas, palavrões, e meteram tudo nos livros que escreveram. Podiam ter mudado os gritos em suspiros, as pragas em orações. Podiam, mas acharam melhor pôr os pingos nos ii.” Em São Bernardo, Paulo Honório berra: “ – Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma!” Em seguida, o personagem Gondim responde: “- Foi assim que sempre se fez. A literatura é a literatura, seu Paulo. A gente discute, briga, trata de negócios naturalmente, mas arranjar palavras com tinta é outra coisa. Se eu fosse escrever como falo, ninguém me lia.” As duas concepções se chocam. O conceito de literatura de Graciliano Ramos coincide com o de Paulo Honório na medida em que para o autor de São Bernardo a literatura nasce da observação direta e profunda da realidade, dos problemas sociais e que se concentra particularmente naqueles que sofrem e tenta representar-lhes a vida, incluindo aí a sua linguagem.
Em São Bernardo, Graciliano Ramos realiza uma obra neo-realista, participante, em que a vida nos é apresentada sem ocultamento, sem ufanismo vazio, sem exotismo, sem retórica oca. É um romance duro, contundente, seco, direto, sem “papas na língua”. A análise que o autor opera, através de sua tessitura, revela a face do Brasil primitivo, do interior, com toda a sua violência e conflitos, denunciadora de problemas sociais e humanos. Em Linhas Tortas, Graciliano observa: “Para sermos completamente humanos, necessitamos estudar as coisas nacionais, estudá-las de baixo para cima. Não podemos tratar convenientemente das relações sociais e políticas, se esquecemos a estrutura econômica da região que desejamos apresentar em livro.” Em São Bernardo a realidade recriada nos aproxima da “vida como ela é”, oferecendo-nos, por conseguinte, elementos para uma análise objetiva, pois uma característica fundamental de Graciliano é a capacidade de integrar a análise social e a investigação psicológica, mostrando como o que somos e o que fazemos social e psicologicamente. “Estamos diante de um fato. Vamos estudá-lo friamente.”, diz Graciliano Ramos. Parece-nos que é o que acontece em São Bernardo. Paulo Honório é um arruinado econômica e psicologicamente. Por quê? É o que o narrador tenta explicar ao escrever o seu livro e encontrar no seu percurso existencial suas verdades. Arremata Graciliano em Linhas Tortas: “Não sei por quê. Acho que o artista deve procurar dizer a verdade. Não a grande verdade, naturalmente. Pequenas verdades, essas que são nossas conhecidas.” São Bernardo é um livro cheio de pequenas verdades que dão uma dimensão humana e social pouco comum na ficção brasileira.

NA RUA DE SUCUPIRA


NA RUA DE SUCUPIRA, O PRIMEIRO LIVRO DE LUCIANO ROCHA

A apresentação que faço de Na Rua de Sucupira, de Luciano Rocha, proporciona-me a possibilidade de mergulhar num universo cultural e social que me fascina, pois, também dele teimo em continuar fazendo parte. Numa época marcada por uma literatura eminentemente urbana, tematizar o interior e a periferia do Brasil acaba sendo um ato de coragem, mas sobretudo de compromisso com as raízes de uma cultura que está morrendo ou que teima em resistir.
O engajamento do escritor ocorre quando ele vislumbra a necessidade de fazer continuar vivendo algo substancial, humano e socialmente autêntico. É o que faz Luciano Rocha, também “bicho da terra”, como sou, ao resgatar “estórias” e “histórias” de nossas redondezas, do mato e da periferia.
Seus contos-estórias, no sentido roseano, preenchem espaços vazios, neste início de século, na Literatura nordestina, quando traz ao conhecimento do leitor a magia, as superstições, o misticismo, o erotismo, enfim o “modus vivendi” de parte da população esquecida e marginalizada, mas que ressuscita em “casos e causos” , tão bem literariamente urdidos nesse livro.
O exercício de resgate desse “modus vivendi” tem como mola propulsora a memória que serve de alavanca para que o escritor filtre, entre as várias “estórias” contadas, os laços humanos, culturais e sociais subjacentes, principalmente, em regiões em que o progresso tecnológico ainda não teve tempo para inexoravelmente deixar suas marcas.
Numa linguagem leve e de acentuado humor, de fundo predominantemente oral, popular e regional, Luciano Rocha dá um testemunho de que é possível fazer boa literatura, sem uso excessivo de retórica e de artifícios lingüísticos, que servem, no mais das vezes, para torná-la ininteligível. Na Rua de Sucupira, o leitor se depara com um universo lingüístico familiar e acessível.
Ler e apresentar seus contos-estórias é fascinante para mim, visto que proporciona adentrar-me num universo humanamente autêntico, de laços sociais e culturais arraigados, não ao episódico mas à tradição cultural e social. Foi um exercício lúdico e de conhecimento mergulhar em vinte e cinco “estórias” urdidas nas argamassas das memórias.

Alexandre Santos
Professor de Literatura brasileira

A PROBLEMÁTICA DE A PROCURA DE JANE


A narrativa se inicia com a personagem central retornando de uma viagem que fizera aos Estados Unidos, talvez a última, depois de já ter feito várias outras e conhecido várias parte do mundo. Nessa viagem, um rapaz que embarca em Miami chama a sua atenção e acaba se tornando amigos.
Professora de filosofia, aposentada, Jane Brasil, cinqüenta anos, vendeu o apartamento, onde morava em Belo Horizonte, e um fusca velho, e com o dinheiro patrocinou mais uma vez uma viagem para o exterior, sendo que desta feita, para os Estados Unidos. Percebe-se que a intenção da protagonista nessas viagens é conhecer culturas diferentes e compará-las com o Brasil.
A narrativa dividida em três partes apresenta na primeira, denominada A Viagem, as peripécias de seu retorno ao Brasil e as conseqüências de ter ficado sem apartamento e com os salários reduzidos em função das despesas feitas e criadas. Nesta parte, a personagem procura a partir de lembranças provocadas pelos diversos acontecimentos ao seu redor refletir sobre sua origem, seu estado atual e principalmente sobre seus conflitos interiores. Na segunda parte, denominada A chegada, a personagem protagonista se depara com uma série de nuances, como, por exemplo, a ordem judicial para desocupar o apartamento e a solução encontrada que foi morar num abrigo. Na terceira, chamada de Busca, Jane Brasil empreende uma procura de sua origem familiar, tendo que se deslocar de Minas Gerais à Bahia, numa espécie de prestação de contas com o seu passado. Predominam nas três partes da narrativa uma espécie de busca obsessiva da personagem pelas suas origens sociais, familiares e culturais, responsáveis, em última instância, pelos seus conflitos interiores.
As origens familiares de Jane Brasil se resumem numa tentativa de reconstruir sua identidade a partir de sua família biológica e de sua família adotiva, com a qual ela conviveu grande parte de sua adolescência. Os aspectos sociais de sua existência giram em torno de sua formação profissional, visto que, no momento da narrativa, ela assume a postura de professora aposentada de filosofia, na plenitude de sua vida intelectual, mas situada numa condição de indigência pelas péssimas condições salariais e de moradia. As reflexões culturais giram em torno das análises que faz em torno da prática de ensino que norteou sua condição profissional de professora e de intelectual.
Ganha corpo na narrativa a procura obstinada que Jane faz em busca de uma chamada “prestação de contas” com uma psicóloga, que, segundo ela, apropriou-se de alguns de seus escritos e publicou em forma de livro autobiográfico com outro título. No desfecho, sabe-se que o encontro entre Jane Brasil e a psicóloga não passa de um truque narrativo, visto que a psicóloga não é nada mais, nada menos que a própria Gizelda, chamada de GM, portanto criadora da personagem-protagonista.
A personagem-protagonista reencontra, depois de muitos anos, sua mãe adotiva no estado da Bahia, onde morava com os filhos, e decide morar com Jane que, para sua surpresa, descobre que o rapaz, companheiro de viagem no retorno dos Estados Unidos, é seu sobrinho-neto. A busca de suas origens termina com esta reflexão: “De qualquer forma, a pessoa que se tornou a partir de seu nascimento, fruto de desejos carnais ou de anseios da mente, é temporária e impermanente, como todo mundo. Por isso ela resiste, vai continuar a sua vida e ninguém vai saber o seu final.”